segunda-feira, 30 de março de 2015

Minha Mãe que não Tenho



Minha mãe que não tenho    meu lençol 
de linho    de carinho    de distância 
água memória viva do retrato 
que às vezes mata a sede da infância. 

Ai água que não bebo em vez do fel 
que a pouco e pouco me atormenta a língua. 
Ai fonte que eu não oiço    ai mãe    ai mel 
da flor do corpo que me traz à míngua. 

De que Egipto vieste?    De que Ganges? 
De qual pai tão distante me pariste 
minha mãe    minha dívida de sangue 
minha razão de ser violento e triste. 

Minha mãe que não tenho    minha força 
sumo da fúria que fechei por dentro 
serás sibila    virgem    buda    corça 
ou apenas um mundo em que não entro? 

Minha mãe que não tenho    inventa-me primeiro: 
constrói a casa    a lenha e o jardim 
e deixa que o teu fumo    que o teu cheiro 
te façam conceber dentro de mim. 

Ary dos Santos, in 'Antologia Poética'