terça-feira, 17 de março de 2015

Povo



Povo que lavas no rio, 
Que vais às feiras e à tenda, 
Que talhas com teu machado 
As tábuas do meu caixão, 
Pode haver quem te defenda, 
Quem turve o teu ar sadio, 
Quem compre o teu chão sagrado, 
Mas a tua vida, não! 

Meu cravo branco na orelha! 
Minha camélia vermelha! 
Meu verde manjericão! 
Ó natureza vadia! 
Vejo uma fotografia... 
Mas a tua vida, não! 

Fui ter à mesa redonda, 
Bebendo em malga que esconda 
O beijo, de mão em mão... 
Água pura, fruto agreste, 
Fora o vinho que me deste, 
Mas a tua vida, não! 

Procissões de praia e monte, 
Areais, píncaros, passos 
Atrás dos quais os meus vão! 
Que é dos cântaros da fonte? 
Guardo o jeito desses braços... 
Mas a tua vida, não! 

Aromas de urze e de lama! 
Dormi com eles na cama... 
Tive a mesma condição. 
Bruxas e lobas, estrelas! 
Tive o dom de conhecê-las... 
Mas a tua vida, não! 

Subi às frias montanhas, 
Pelas veredas estranhas 
Onde os meus olhos estão. 
Rasguei certo corpo ao meio... 
Vi certa curva em teu seio... 
Mas a tua vida, não! 

Só tu! Só tu és verdade! 
Quando o remorso me invade 
E me leva à confissão... 
Povo! Povo! eu te pertenço. 
Deste-me alturas de incenso, 
Mas a tua vida, não! 

Povo que lavas no rio, 
Que vais às feiras e à tenda, 
Que talhas com teu machado, 
As tábuas do meu caixão, 
Pode haver quem te defenda, 
Quem turve o teu ar sadio, 
Quem compre o teu chão sagrado, 
Mas a tua vida, não! 

Pedro Homem de Mello, in "Miserere"